A Proteção do Adquirente de Imóvel na Planta Frente a Atrasos na Entrega: Direitos e Mecanismos Legais
Palavras-chave: Imóvel na Planta, Atraso na Entrega, Direitos do Consumidor, Código de Defesa do Consumidor, Construtora, Incorporadora, Cláusula de Tolerância, Rescisão Contratual, Indenização, Lucros Cessantes, Danos Morais, Lei do Distrato, Lei de Incorporações Imobiliárias.
Introdução
A aquisição de um imóvel na planta representa, para muitos brasileiros, a realização de um sonho e um importante investimento. Contudo, não raras vezes, o entusiasmo inicial é substituído pela frustração e por prejuízos decorrentes do atraso na entrega da obra pela construtora ou incorporadora. Este artigo visa elucidar os direitos do adquirente nesses cenários, explorando as proteções conferidas pela legislação brasileira e pela jurisprudência consolidada dos nossos tribunais.
A Relação Contratual e a Incidência do Código de Defesa do Consumidor
Inicialmente, é crucial destacar que a relação jurídica estabelecida entre o adquirente (promitente comprador) e a construtora/incorporadora (promitente vendedora) de imóvel na planta é, via de regra, caracterizada como uma relação de consumo. Nesse sentido, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor (CDC - Lei nº 8.078/1990), que estabelece um microssistema protetivo ao consumidor, reconhecido como a parte vulnerável da relação.
Os contratos de promessa de compra e venda de imóveis na planta são, em sua maioria, contratos de adesão, nos quais as cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, sem que o consumidor possa discuti-las ou modificá-las substancialmente (art. 54 do CDC). Essa característica reforça a necessidade de uma interpretação contratual mais favorável ao adquirente.
A Cláusula de Tolerância: Validade e Limites
É prática comum no mercado imobiliário a inserção de uma "cláusula de tolerância" ou "prazo de carência" nos contratos, que usualmente estipula a possibilidade de prorrogação do prazo original de entrega da obra por 180 dias, independentemente de justificativa.
A jurisprudência pátria, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pacificou o entendimento de que tal cláusula, desde que pactuada de forma clara e expressa no contrato, não é, por si só, abusiva. A Lei nº 13.786/2018 (conhecida como Lei do Distrato), que alterou dispositivos da Lei nº 4.591/1964 (Lei de Incorporações Imobiliárias), veio a positivar essa tolerância, estabelecendo no art. 43-A:
"Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador.
§ 1º Se a entrega do imóvel ultrapassar o prazo estabelecido no caput deste artigo, desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, poderá ser promovida por este a resolução do contrato, sem prejuízo da devolução da integralidade de todos os valores pagos e da multa estabelecida, em até 60 (sessenta) dias corridos contados da resolução, corrigidos nos termos do § 8º do art. 67-A desta Lei.
§ 2º Na hipótese de a entrega do imóvel estender-se por prazo superior àquele previsto no caput deste artigo, e não se tratar de resolução do contrato, será devida ao adquirente adimplente, por ocasião da entrega da unidade, indenização de 1% (um por cento) do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, pro rata die , corrigido monetariamente conforme índice estipulado em contrato."
Contudo, é fundamental que o prazo de 180 dias seja o limite máximo. Qualquer tentativa de estender esse período por meio de cláusulas genéricas ou vinculadas a eventos previsíveis (como escassez de mão de obra ou chuvas dentro da média histórica) pode ser considerada abusiva, nos termos do art. 51, IV, do CDC. O fortuito interno, inerente à atividade empresarial da construção civil, não exime a responsabilidade do fornecedor.
Direitos do Adquirente em Caso de Atraso Injustificado
Ultrapassado o prazo contratual, acrescido do período de tolerância de 180 dias (se existente e válido), configura-se a mora da construtora/incorporadora. Diante desse cenário, o adquirente possui, basicamente, duas opções, além do direito a indenizações:
- Resolução do Contrato por Culpa da Construtora: O adquirente pode optar pela resolução do contrato, com direito à devolução integral e imediata de todos os valores pagos, devidamente corrigidos monetariamente desde cada desembolso e acrescidos de juros de mora a partir da citação (ou da data em que a construtora foi constituída em mora, se anterior). Nesse sentido, a Súmula 543 do STJ é clara:
"Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento."
- Manutenção do Contrato e Indenização pelo Atraso: Caso o adquirente ainda tenha interesse em receber o imóvel, mesmo com o atraso, ele pode exigir o cumprimento forçado da obrigação, sem prejuízo das perdas e danos cabíveis. A Lei nº 13.786/2018, no já citado art. 43-A, §2º da Lei nº 4.591/1964, estabelece uma indenização específica para essa situação: “indenização de 1% (um por cento) do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, pro rata die”. É importante notar que essa indenização legal pode não afastar o direito a outras reparações, dependendo do caso concreto e da extensão dos prejuízos.
Indenizações Cabíveis
Independentemente da opção pela rescisão ou manutenção do contrato, o adquirente pode ter direito a diversas formas de indenização:
- Lucros Cessantes: São os prejuízos decorrentes daquilo que o adquirente razoavelmente deixou de lucrar em virtude do atraso. O STJ firmou o entendimento (Tema Repetitivo nº 996) de que, no caso de descumprimento do prazo para entrega do imóvel, incluído o período de tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, correspondendo aos aluguéis que este poderia ter recebido com o imóvel. Contudo, a Lei nº 13.786/2018, ao prever a indenização de 1% sobre os valores pagos (art. 43-A, §2º), buscou tarifar essa perda, sendo necessário analisar se essa prefixação legal afasta ou não a possibilidade de cumulação com lucros cessantes calculados de outra forma, especialmente se estes forem comprovadamente superiores. O Tema 970 do STJ estabeleceu que a cláusula penal moratória não é cumulável com lucros cessantes se tiverem o mesmo fato gerador, o que deve ser considerado na análise da indenização da Lei do Distrato.
- Danos Morais: O mero atraso na entrega do imóvel, por si só, não configura automaticamente dano moral indenizável. Conforme jurisprudência majoritária, é necessária a comprovação de que o atraso extrapolou o simples aborrecimento contratual, causando angústia, sofrimento ou lesão a direitos da personalidade do adquirente. Situações como a frustração do sonho da casa própria, a necessidade de adiar planos de vida (casamento, mudança de cidade) ou a exposição a situações vexatórias podem justificar a condenação por danos morais.
- Inversão da Cláusula Penal (Tema 971 STJ): Como mencionado, se o contrato prevê cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, a mesma deverá ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (pagamento de imposto e entrega de unidade) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial.
- "Congelamento" do Saldo Devedor: Alguns tribunais têm entendido que, configurada a mora da construtora, o saldo devedor do imóvel não deve mais ser corrigido pelo Índice Nacional de Custo da Construção (INCC), que reflete os custos da obra, mas sim por índice menos oneroso ao consumidor (como o IPCA ou IGPM), durante o período de atraso imputável à vendedora. Essa medida visa evitar que o consumidor seja penalizado pela demora da construtora, pagando uma correção monetária que, em tese, decorre do próprio atraso na conclusão da obra.
Recomendações Práticas ao Adquirente
Diante do exposto, algumas recomendações são importantes:
- Análise Contratual Detalhada: Antes de assinar, leia atentamente todas as cláusulas, especialmente as relativas a prazos, tolerâncias e penalidades. Se possível, consulte um advogado.
- Guarde Todos os Documentos: Mantenha cópias do contrato, material publicitário, comprovantes de pagamento e toda a comunicação trocada com a construtora.
- Notificação Formal: Ao constatar o atraso e o esgotamento do prazo de tolerância, notifique formalmente a construtora, requerendo informações claras sobre o novo prazo e manifestando sua insatisfação e intenções.
- Busque Assessoria Jurídica: Um advogado especializado em direito imobiliário poderá analisar o caso concreto, orientar sobre os direitos e as melhores medidas a serem tomadas, seja por via extrajudicial (negociação) ou judicial.
Conclusão
O atraso na entrega de imóvel adquirido na planta é uma situação que gera inúmeros transtornos e prejuízos ao consumidor. A legislação brasileira, em especial o Código de Defesa do Consumidor e as recentes alterações promovidas pela Lei nº 13.786/2018, em conjunto com a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, oferece um arcabouço de proteção significativo ao adquirente. Conhecer esses direitos é o primeiro passo para buscar a justa reparação pelos danos sofridos, seja pela rescisão do contrato com a devolução integral dos valores pagos e multas, seja pela manutenção do vínculo contratual com a devida indenização pelo período de mora da construtora. A atuação proativa e o auxílio de um profissional do direito são essenciais para garantir que a justiça seja efetivamente alcançada.
André Luiz Guella
OAB/SC 22.640
Fernanda Salete Guella
OAB/SC 27.534
Chapecó-SC, 21 de maio de 2025.